sábado, 27 de abril de 2013

PERFIL DO AUTOR - CONTO - Albarus Andreos



      
      Foi muito cansativo esperar o final do interrogatório.
            A família de Elis insistia que eu era o responsável pelo seu desaparecimento.
            Depois de três dias em que eu a vira pela última vez, era inevitável que a polícia batesse à minha porta. De novo o investigador Burlamaqui, com sua barriga repulsiva saindo pelo gargalo apertado das calças. Seu rosto desleixado de cachorro. Sandálias de couro nos pés que me enojavam, mas que insistentemente olhava, por alguma razão. Aqueles dedos podres com unhas amarelas e quebradiças. Vomitaria neles se não desviasse os olhos, mas sempre voltava a ver, pareciam estar por toda parte, aqueles pés repugnantes! Não sei por quê voltava a olhar.
            Ele vinha falar da mina. Não tinha mais nada com ela, pô! Até havia gostado um pouco de Elis. Seu jeito doce de falar, seu olhar infantil que deixava um risinho malicioso no final. Sua conversa inteligente. Elis era linda. Mas não me importava. Não conseguia dar importância a relacionamento algum. Tudo sempre acabava do mesmo jeito. Ela me queria, e isso parecia deixar tudo muito fácil. Dava a impressão de se estar seguindo um roteiro que já conhecia. Não deu para ficar com ela. Com Elis era só uma fome irresistível, como fora antes e sempre. Não podia deixar de saciar. Desde meus quatorze anos. Nem tinha pêlo no saco direito e já me perdia em pensamentos. Deus, que tara era a minha?
            Fugi de casa cedo. Fugir é modo de dizer, pois mamãe continuava me mandando grana. Dinheiro não faltava. Queria saber se com as crianças carentes que também nunca viram um pai é assim. Recebia muito mais que precisava, na verdade. Comprava roupas, carro, maconha... Não tinha falta de nada. Fumava sempre sozinho, com minha guitarra, dedilhando Cold Play, Evanescence... Gostava de rock de velho também. Não sabia os nomes, mas ficava li, metodicamente dedilhando até sair. Elis era como eu. Elis odiava sua casa também.
            Elis... Não tô nem aí!
            Não pensem que não ligava, realmente! Nem conseguia mais ficar no mesmo lugar depois de acabar com tudo. Mudava. São Paulo é bom por isso. Não que eu conheça outro lugar. Mas acho que é bom. Me condoia por dentro. Me sentia o pior dos caras. Eu amei cada uma delas, mas não deu! Fazer o que? Tinha que continuar. Viver essa vida do jeito que sei. Não sei muito. Escola particular e tal, mas sempre fui pouco atento. Não tô nem aí...
            Depois, sempre tinha outra para substituir a paixão avassaladora que também ia fácil. Ninguém é de ninguém, dizia mamãe. Eu que me virasse. E eu me virava.
            O Gol do polícia foi embora. No volante ficava outro investigador. Sempre estava lá. Será que o Burlamaqui tinha medo de mim? Babaca! Três horas e meia de interrogatório dito “não oficial” foram suficientes para que o investigador saísse do meu pé por aquele dia. Dessa vez ele gritara que sabia que algo estava errado. Disse que “estava de olho em mim” e estas coisas de policial que não sabe o que fazer. Não havia sequer um corpo. Uau! Me espantei.
            Elis morta? Ela é flor! Ela é passarinho. Menina cheia de sol! Só saiu fora e eu ajudei. Todas a minas odiavam onde moravam. Sofriam... Se eu posso ajudar eu ajudo. Sei como é sofrer em casa.
            As vezes fico tão cheio de angústia... Uma vez que comia, perdia a graça. Sou um maldito volúvel e imprestável. Sou superficial quando me imagino intenso. Aí é que vejo como sou um monstro. Assim fora com a Didi, com a Lu... Quem sabe se um dia isso muda... Mas depois da primeira vez, me excitou muito. Era sempre assim... Não! Nem sempre fora assim. Na verdade, antes delas havia tido o Marcinho.
            Acho que os meninos de rua não tem o mesmo problema, não. Eles não tem pais, mas os pais deles todos estão perto, nas comunidades em que vivem. Quase ninguém tem pai. Marcinho não tinha também. Conheci no farol. Roubou minha bolsa quando voltava da rave. Tava com tanto sono que não deu pra ver de onde ele vinha nem para onde ia. Tava muito chapado!
            Mas reconheci o menino no dia seguinte, quando passei de novo no cruzamento. Ela tava lá, pedindo esmola e roubando, como sempre. Via aqueles moleques sempre ali. Diversas vezes. Um dia vi dois PMs batendo neles, desci do carro para parar com aquilo. Os meninos fugiram e os PMs me pegaram no lugar. Não me prenderam, quando viram o carro importado de onde saíra. Temeram alguma coisa, sei lá. Batem em pobre, em rico imaginam que pode dar problema. Saíram fora depois de me quebrarem a cara, e só.
            Dias depois o moleque me reconheceu. Marcinho veio falar comigo quando passava de novo no cruzamento. Fomos lanchar. Depois fomos para o Motel. Então descobri o que eu gostava de fazer. Descobri que gostava era daquilo. Me senti sujo depois. Quase pus fim a minha vida. Mas por que deveria fazer isso? Se nunca havia achado motivos antes, com toda a desventura sórdida que havia sido minha existência antes daquilo?
            Nunca mais o vi como antes. Levei-o para meu apê no Paraíso, onde morava na época e pela primeira vez experimentei da carne. Contudo, depois que maculava o lugar não conseguia mais ficar. Tinha que mudar. Aquela coisa gritava na minha cabeça. Ia embora para não me lembrar mais do amor que ali extravasara meu peito e minha alma. Tinha que procurar outro canto onde pudesse construir outro santuário de sossego, lugar meu. Didi comi na Mooca, a Lu em Perdizes, a Elis... A Elis aqui mesmo na periferia, onde todo mundo é mais aberto. Mais amigo. Mas não vou ficar mais por aqui não. Acho que vou embora do Brasil. Tem o apê de Miami que nunca fui. Fosse onde fosse meu santuário, quando mudava, tudo mudava. Esquecia o pesar do abandono dos outros lugares. Esquecia as coisas mortas. Tudo cheirava novo. Tudo de mal ficava para trás. Tudo dava sempre certo, onde eu vivia de novo.
            Aquele maldito investigador estava chegando perto, por mais improvável que fosse. Disse que haviam me visto no bar, o que pouco importava, na verdade. Ele deitava quem quer que estranhasse. Não tinha para ele não! Porra, vi enfim que tinha medo daquele cara. E a família de Elis queria que ele me pegasse. Não gostavam do jeito como eu dava força para ela contra as merdas que ela ouvia em casa. Burlamaqui não era o nome dele. Era branco enquanto todo mundo na comunidade era preto, por isso o nome da atriz. Era um dos poucos polícias que podia andar por aquelas ruas. Fazia parte do “grupo” que livrara o bairro dos traficantes. Cobrava uma graninha dos lojistas e dos botecos, para manter a área limpa, com seu “pessoal”. Ele matava, mesmo.
            Mamãe matou papai para ficar com a herança. Ela nunca soube que vi, mas eu vi. Ela o matou quando eu era muito pequeno. Colocou papai no porta-malas e ele nunca mais voltou. Eu vi. Mas não vou pensar nisso de novo. Não vou. Não sei por quê, quando começo a pensar não consigo parar. Mas vou parar. Não penso. Não penso. Não vou pensar... Mas penso. Burlamaqui sabe. Algo me diz que sabe. Ele já sentiu o gosto de matar e sabe como é. Ele olha pra mim e vê. Sabe que sei como é.
            Tenho que mudar de novo. Depois do almoço vou...
            Era meio dia e estava com fome. Fui até o freezer, Elis olhava para mim. Queria comer fígado hoje. Pequei a bowie de cabo de osso que comprei na 25 e tirei então, pus no microondas para descongelar. Elis era linda! Passarinho que voa e não volta mais. Foi ver o sol de perto. Havia uma penugem de gelo sobre ela toda. Depois do beep, retirei a carne, temperei com páprica e manjerona. Uma pitadinha de sal e um galhinho de cheiro-verde para decorar. Gosto cru mesmo. Não cru, de verdade, que depois de descongelado no microondas, saído do freezer, perde um pouco do sabor.
            Marcinho sim, comi cru, fatia por fatia.


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