segunda-feira, 21 de maio de 2012

A Vitrine da Loja

 vitrines

     Uma das coisas que mais aborreciam aquela mulher de trinta e dois anos era ter que ir ao centro da cidade. Fernanda não suportava atravessar as ruas tão movimentadas segurando sacolas e mais sacolas das compras que fazia todo sábado, e era difícil andar normalmente, pois talvez para fazer logo o que tinha que fazer parecia que tinha mais pressa dos que as outras pessoas no meio da multidão. Era uma mulher prática e não tolerava contratempos e inconveniências.
     Sua impaciência levava-a a se contorcer em ultrapassagens perigosas e em curvas sinuosas nas calçadas e cruzamentos. Era como um veículo em missão de urgência, uma máquina perfeita controlada pela racionalidade das leis da física. E era tudo em nome da liberdade de ir e vir — talvez naquele instante contasse mais a liberdade de ir do que a de vir, pois o vir era tão terrível, e precisava urgentemente da liberdade de chegar logo em casa. O calor do dia se tornava intenso e ela já estava quente por dentro. Sentia o próprio sangue ferver como um líquido inflamável. “Você tem um gênio muito difícil”, sua mãe já lhe dissera algumas vezes. Mas como permanecer calma num trânsito intenso de pessoas como aquele? Pensou na necessidade de ficar calma. “Mas para quê?”, perguntou-se, sem conseguir chegar a uma resposta. Pensar em se acalmar só fazia aumentar sua impaciência.
     Parecia que todo ponto de ônibus ainda estava longe demais, e as sacolas de plástico cheias de compras agora não incomodavam tanto quanto o peso que sentia nas costas. Uma pontada de dor que ameaçava aumentar, provavelmente culpando-a pela sua pressa. Mas a pressa sim, era necessária. Queria tanto chegar logo em casa, guardar as compras e descansar no sofá confortável da sala assistindo à novela das seis.
     Um carro quase a atropelou quando suas pernas insôfregas avançavam o sinal vermelho para pedestres. Como se estivesse numa corrida de fórmula um e pudesse competir de igual para igual com os outros carros. Já na calçada do outro lado da rua, vitoriosa, sorriu por dentro — era impossível expressar o sorriso em seus lábios, já que não tinha tempo pra isso e também o pensamento de sorrir era mais rápido. Entretanto, ao continuar o percurso à sua frente não se deu conta dos lados, e, mais uma vez andando a passos largos, acabou trombando na calçada com um rapaz que carregava jornais para entrega.
    Com o choque, os jornais caíram todos no chão, junto às sacolas que ela levava. Em meio ao susto, Fernanda viu o que para ela era uma ironia do destino. Os jornais molhavam nas poças d´água e voavam ao vento, e as sacolas se abriram, espalhando suas compras por todos os lados. Latas de molho de tomate e de atum rolavam pelo chão, e uma delas foi mesmo atirada ao longe pelo chute de um pedestre, que pareceu não ver o que acontecia. Ou talvez fizera de propósito mesmo. O presunto saíra do papel e as garrafas de vidro se quebraram, entornando o suco de acerola que ela há bastante tempo queria experimentar, mas que agora tinha gosto de rua e fazia-a sentir um gosto amargo em sua boca escancarada por causa do espanto.
     Ao ver aquilo tudo, uma grande raiva apoderou-se dela e já ia xingar o rapaz pelo que tinha acontecido quando se conteve por perceber que a culpa fora dela mesma. A culpa era de sua pressa. Fechou o rosto assim mesmo. Não era dada a escusas.
     — Meus jornais, olha o que você fez… — disse ele, desapontado, pedindo uma explicação de sua parte.
    Deu-lhe então um dinheiro e disse-lhe que estava muito descuidada e com muita pressa. O rapaz ainda olhou um tanto decepcionado para ela.    
    Fernanda recolheu aquilo que poderia ser salvo do desastre das compras e colocou de volta nas sacolas, enquanto o rapaz corria pela calçada atrás dos jornais que poderiam ainda ser aproveitados. “Que dia”, Fernanda pensou, “Tudo é tão difícil, não devia ter saído de casa hoje”.
     Acerola nunca mais. Desistira de vez de experimentar. “Devia ser horrível mesmo”, pensou, procurando talvez uma compensação. “A vida já é ácida demais”.  Precisava chegar logo em casa.
      Seguiu em direção ao ponto de ônibus, segurando ainda nas nãos as sacolas das compras que sobraram. Dava passos maiores que as pernas carregando sua ânsia implacável. Decidia que a pressa era inevitável, e a partir de então a pressa era somente sua, pois já tinha pago um preço por ela naquele dia infeliz.
      Mas então parou. Como se despertada por uma obrigação súbita. Notou o que estranhamente acontecia na vitrine da loja de roupas logo à sua frente. Colocou uma das sacolas no chão e, com as costas da mão, esfregou os olhos, intrigada.
      Aqueles manequins a observavam, e pareciam ter deixado seu mundo particular por sua causa. Todos os três, vestidos com as roupas que a loja vendia, olhavam pra ela com pavor, como se acometidos de grande espanto por causa de sua presença. Olhos profundos que a investigavam como se ela fosse a única pessoa que havia na multidão.
     Tentou entender direito o que estava acontecendo, e vendo que aqueles olhares indiscretos não desviavam a atenção sobre ela, Fernanda procurou despistar, olhou para um lado, depois para o outro, e viu que ninguém notava qualquer anormalidade por ali. Pessoas passavam e olhavam a mesma vitrine ameaçadora como se nada de ameaçador estivesse acontecendo, comentando ainda entre si como era bonito aquele vestido naquele lado da vitrine ou como estava barato, ou como estava cara aquela roupa na exposição.
     Entretanto ali estavam aqueles olhares vivos de pavor que continuavam a perscrutá-la, e pareciam estar indignados.
    “Mas por quê?”, ela se perguntava. “O que há de errado comigo?”. E olhou para si própria, tentando encontrar alguma falha ou sujeira no vestido vermelho que ela estava usando, talvez a meia desfiara ou o salto tinha se quebrado.
    Então se lembrou que naquela manhã havia feito um remendo no vestido. Não tinha ficado muito bom e então devia ser isso, ela pensou. Porém percebeu que eles não estavam olhando especificamente para o seu vestido com a alça mal costurada.
     Olhavam nos olhos dela. Fernanda sentiu que sua maquiagem havia se desmanchado. Mas como poderia saber disso se não havia nenhum espelho à sua volta?
    Mas era porque conseguia ver a sua imagem disforme no vidro da vitrine. Seu rosto refletido estava esquálido e sem expressão. Mas e o pavor que sentia? Viu novamente aqueles olhares inquietos que a invadiam e encaravam-na de frente, sérios e tomados de pavor. Como se ela estivesse expelindo sangue pela boca. Não apenas um filete, era como se o sangue estivesse jorrando por seus lábios.
    “Por que estão fazendo isso comigo?”, ela se perguntou, e um grito de medo quase escapulira de sua garganta mas logo se conteve, pois não queria aceitar o medo. Viu-se assaltada de si mesma e não tinha armas pra poder reagir.
      Pensou que aquilo tudo era como um vento frio que penetrava em seu corpo e só de pensar nisso já começava a tremer — Medo ou frio? Talvez fosse tudo isso, mas naquele instante não sabia direito.
     Aqueles olhares repreendiam-na e repudiavam-na sem palavras. Sentiu-se insegura e desconfortável sabendo que era vasculhada por dentro, e era como se naquele momento era ela o manequim e parecia vestir algo que ninguém compraria.
     Fernanda viu-se acometida da denúncia involuntária de si mesma. Se alguém estivesse a observar aquela situação poderia pensar o pior dela. Assistia na vitrine um drama que era seu. Um mal-estar em si.
     E como se já não bastassem as expressões de pavor, os manequins da loja subitamente começaram a gritar para ela, e Fernanda, atordoada pelo susto — podia ouvi-los a gritar — quase deixou suas sacolas caírem ao chão mais uma vez.
     Gesticulavam para ela. Movimentavam os braços, apertavam a cabeça com as mãos e escancaravam bocas e olhos aterrorizados. Olhavam para cima e agora gritavam palavras mudas de agonia.
     “Meu Deus”, pensou aflita, “o que foi que eu fiz…”
     Vítima de suas próprias atitudes, agora se sentia culpada.
    Lembrou-se que há muito tempo sua mãe lhe dissera, quando faziam compras juntas, que os manequins das vitrines de lojas entendiam os sentimentos e desejos das pessoas. Tinham experiência e estavam acostumados a isso. E Fernanda, em meio ao medo comprovado, chegou à conclusão de que eles tinham razão.
     E um grande arrependimento tomava conta dela por não ter se dado conta antes de algo que poderia ter evitado. Então saiu correndo dali, deixando os manequins que ainda gesticulavam na vitrine. Naquele instante mais do que nunca precisava chegar em casa.
     Depois de vinte minutos esperando no ponto — o que fez aumentar sua aflição – o ônibus finalmente chegou. Estava muito cheio mas não quis esperar por outro. No caminho, em pé com as sacolas de compras, viu pela janela do ônibus que todas as ruas vinham e passavam, e só a dela não chegava nunca.
     Até que então finalmente estava na porta de sua casa. Experimentou o trinco e a porta abriu-se. O marido devia estar em casa, sentiu-se aliviada por saber disso. Ao entrar viu que lá estava ele, sentado no sofá em frente à TV. Ele parecia ter chorado muito e a sua mágoa naquele momento parecia ter eliminado a alegria costumeira de seu jeito de ser.
     Fernanda olhou-o nos olhos e sentiu-se horrível vendo a tristeza dele. Estava triste consigo mesma. Ainda com as sacolas nas mãos, pois então nem mais se lembrava delas, aproximou-se dele dizendo:
     — Por favor, David, me desculpe.
     E a sua voz soou como uma súplica.
     — Perdoe-me, eu não queria ter feito aquilo.
     Ele virou-se para Fernanda com o semblante sério. Ela estava apreensiva e demonstrava sinceridade. Revelava-se a ele e também, afinal, a si própria.
     Foi quando ele então sorriu pra ela.

FIM

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