quinta-feira, 17 de maio de 2012

Dom

explosao-copia

1

Foram dois ou três segundos apenas: no primeiro, seus lindos olhos azuis eram vivos, como um oceano sereno, perdidos no paraíso… no segundo, embaçados, como olhos retirados de um velho quadro empoeirado, sem qualidade alguma.
            Sim, Jéssica morrera em meus braços, entre os destroços de seu ateliê, em um dos piores terremotos que atingira o sul do Brasil… e o caos havia somente começado, o pior ainda estaria por vir, sabia disso, embora não desejasse realmente saber.
            Os olhos embaçados de Jéssica encontraram-se com os meus, sobre o reflexo de um pedaço de espelho disforme, velho e sujo… Eram lembranças amargas.
            - Maldito Dom! – exclamei para mim mesmo, arremessando o espelho em um dos cantos escuros e úmidos do casebre.
Nem mesmo sedado conseguira cessar as visões que tanto me perseguiam desde criança… era um dom, como uma maldição, que me transformou, com o tempo, em uma pessoa estranha, hipocondríaca. Qualquer dor que o corpo reclamasse, era para mim como um pressentimento de morte… nem sempre conseguia distinguir o comum do anormal.
Com isso, acabara perdendo o contato com os amigos, com os familiares que tentaram algumas vezes internar-me.
            O problema maior era que as visões surgiam de forma pronta, inflexível, sem possibilidades de alterações. Mostravam exatamente o que aconteceria segundos, minutos, horas ou dias depois, sem que jamais se conseguisse alterar seu contexto final.
            Então alguns questionamentos alfinetavam-me o raciocínio: por que elas surgem, uma vez que são imutáveis? Seriam apenas para atormentar minha sanidade, meu coração e espírito?
            Jéssica não fora a primeira e não seria a última a morrer em meus braços.

2

Nunca me acostumara com as visões. Elas continuavam sendo cada vez mais chocantes e assustadoras para mim.
Recordo-me da minha primeira entrevista, como candidato a jornalista, no prédio da rádio CBN… nessa época, já havia conseguido um pouco mais de intimidade com a anomalia.
A conversa iniciou-se franca, aberta e amiga. Heitor, o editor responsável pelas contratações, possuía idade suficiente para ser meu pai, contudo não disfarçava seu lado narcisista, vestindo um terno impecável. Havia abandonado sua cadeira no lado oposto à mesa e sentado ao meu lado. Mantinha seu laptop aberto à frente, na página oficial da rádio, enquanto conversávamos.
A receptividade estava sendo melhor do que a esperada, embora tal entrevista tivesse sido recomendada por uma colega de faculdade… talvez a tivesse subestimado em seus contatos.
Em dado momento, quando fixei o olhar na tela do laptop, na linha destacada de notícias, que sumia vagarosamente e tornava a surgir, algo conhecido aconteceu: senti aquele mal-estar crescer vertiginosamente, vindo diretamente do estômago e atingindo as extremidades do corpo como um raio; depois a realidade se distorceu em alguma parte, com simplicidade, como sempre acontecia, normalmente em traços difusos, como se fossem desenhos infantis mal acabados.
Na tela do seu laptop, as letras passaram a liquefazer, escorrendo dentro do monitor… havia algo de assustador naquela distorção. Algumas vezes essas aberrações não eram tão assustadoras… às vezes, talvez até por ironia, elas chegavam à margem da comédia. Entretanto, o fim da história resumia-se sempre em duas circunstâncias: catástrofe e imutabilidade.
A imagem passou a trepidar, oscilando a claridade do monitor, como se estivesse acometido de alguma falha na energia. De inopino, entre os traços que escorriam pela tela, durante as oscilações, e como uma mensagem subliminar, notei que havia algo se movimentado com dificuldade… algo que se esforçava em aparecer.
Semicerrei os olhos, enquanto Heitor discursava com sua voz cada vez mais longínqua, e despenquei sobre os joelhos, defronte à tela do laptop, agarrando-a com ambas as mãos.
Heitor finalmente silenciou-se, apesar de já não ouvi-lo há algum tempo.
Os traços escorridos formavam a imagem do perfil de uma mulher cabisbaixa, sentada em algo.
Com as oscilações de claridade, por vezes seus traços sumiam.
Em uma das vezes, a imagem retornou em pé, enquanto algumas letras escorridas maculavam sua imagem. Logo, outros traços que vertiam ao lado formaram um tipo de parapeito antigo, parecendo-me familiar. De pronto, o estranho desenho elevou uma de suas pernas, de traços malfeitos, e subiu na mureta… seus cabelos oscilavam atrás, como se houvesse um forte vento açoitando-os.
Repentinamente, um estampido explodiu em meus ouvidos, assim como o corpo da ilustração na calçada que se formou abaixo.
Havia agora uma horrenda boca aberta se formando da mancha negra que espirrara de sua cabeça no monitor, gritando um som estridente, enquanto o estampido aumentava seu volume, ecoando, de forma quase insuportável em meus ouvidos.
Quando dei por mim, Heitor estava agarrado às minhas mãos, que tentavam insanamente arrancar chumaços de cabelo da própria cabeça… ouvi o som da minha voz sumindo no interior opressivo da sala.
Ao me recompor, ainda ofegando, após a complacência de Heitor, que fora buscar um copo d’água em um dos cantos da sala, não obstante disfarçasse a todo o momento um olhar desconfiado sobre minha sanidade, meus olhos mergulharam no porta-retratos postado em uma prateleira atrás de sua cadeira de espaldar alto.
Na foto, uma linda mulher de lado, em uma pose profissional… e, embora os traços das visões fossem muito toscos, sempre identificava algo que as remetiam às verdadeiras vítimas. Recordo-me que no início as dúvidas em relação às identificações eram muitas, porém, nessa época da entrevista, já conseguia fazer um reconhecimento com certa convicção.
- Quem é ela? – indaguei, entre uma e outra frase apreensiva de Heitor sobre a minha sanidade.
- Hã? Ela quem? – deteve-se em pé, copo d’água sobre as mãos, procurando por sobre os ombros, na dúvida absurda de haver alguma mulher adentrado a sala nesse entretempo.
- Ela! – lancei. Apontando um dos indicadores em direção à foto.
- Ah, sim! – respondeu, afrouxando o tenso tom da voz e esboçando um sorriso tênue. – É a minha filha Estefani! Linda, não? Ela faz parte de um grupo de balé! Eles viajam ao redor do mundo fazendo apresentações… mas por que a pergunta? Você a conhece?
Repentinamente, reconheci aquele parapeito que vira em recente visão. Sabia que algo me soava familiar… tinha fotos dele em casa.
- Ela está em Santiago? – indaguei, sem retirar os olhos fixos do porta-retratos.
- Como?
- Eu perguntei se ela está em Santiago? – reforcei, em tom mais ofensivo.
- Não sei. Você quer dizer, Santiago…
- Santiago do Chile, imbecil! Você não está ouvindo o que estou dizendo?
- Ei, rapazinho, não vou tolerar que você entre aqui na minha sala e… – dizia, colocando o copo sobre a mesa.
- Você não sabe absolutamente nada sobre sua própria filha, sabe? – interrompi, relanceando os olhos sobre os de Heitor, que estagnou ainda segurando o copo já depositado sobre a mesa. – Pois vou lhe dizer! Sei exatamente onde ela está agora! Ela está em visita à PUC de Santiago do Chile, junto com sua equipe de dança! Farão uma apresentação lá hoje à noite! Sabe por que ela decidiu juntar-se à equipe? – perguntei, Heitor franziu o cenho, desconfiado. Endireitou-se, cruzando os braços sobre o peito, mantendo-se silente, na defensiva.
- Por que você não lhe dá atenção suficiente! Ela é cheia de problemas emocionais desde a morte da mãe! E é bulímica… Sabe o que é isso? – inquiri, pondo-me em pé, em sua direção.
- Sim, eu sei, mas como… – dizia, enquanto se afastava.
- Tem tomado antidepressivos há anos, você sabia a respeito disso? Claro que não! Você tem de tomar uma decisão! Ligue para ela enquanto é tempo! E o tempo de disponibilidade com a sua filha não será prorrogado! – findei, agarrando meu paletó que estava sobre um sofá de canto, retirando-me da sala.
Naquela tarde, Heitor tomou a decisão errada. Saiu da sua sala, antes de dar uma boa olhada no retrato de Estefani, e ingressou em outra, em uma importante reunião da rádio. Ligaria mais tarde, quando uma colega atenderia seu celular que estaria junto a sua mala abandonada em um dos banheiros da PUC.
A partir dali, Estefani seria só uma recordação em um porta-retratos.
A verdade é que em todas as tentativas que fiz para impedir uma morte, somente consegui maximizar as conseqüências, ou seja, mais pessoas inocentes feriam-se ou morriam.
Além de suportar esse maldito dom, ainda tenho de controlar minha hipocondria. Não raras vezes ainda acordo de madrugada com alguma dor abdominal ou encefálica, achando que é um prenúncio de morte.

3

Não sei quanto tempo sobreviverei, mas tenho o pressentimento que não irei longe nesta guerra que começou há mais de uma semana.
Quem diria o Brasil envolvido em guerra com os países sul-americanos? Uma maldita e verdadeira guerra?, pensei, meneando a cabeça. Quem diria que o terremoto que matara milhões de pessoas, e levara Jéssica, era algo acobertado pelo governo? Algo que seria o prenúncio da guerra?
Dois dias antes do primeiro ataque, tentei avisar as autoridades… fui ao Congresso, ao Palácio do Planalto…
Primeiro não me levaram a sério, depois tentaram me internar e, por fim, prenderam-me por perturbação do trabalho e do sossego alheio, por não conseguirem nada melhor. Fiquei trancafiado, mesmo cometendo um crime de menor potencial ofensivo, comumente resolvido com a confecção de um Termo Circunstanciado.
Somente fui liberado após o primeiro ataque aéreo da Bolívia, que atingiu o centro da capital do País… pura sorte ter sido levado a um distrito longe do complexo dos três poderes.
Vim direto a Curitiba, onde encontrei a querida Jéssica, soterrada em seu próprio ateliê, em seu último segundo de vida… seus lindos olhos azuis permanecerão eternamente em minhas recordações.
Agora estou aqui, recluso na serra do mar, no velho casebre da família.
O vovô adorava este lugar e já consigo entender o porquê: há muito silêncio por aqui, paz… a natureza o cerca, você consegue reduzir seu contato espiritual com um mundo que ainda não conhece.

4

Tive minha última visão quando saí do distrito, ao notar um outdoor à frente, em meio à devastação ao redor, preso por uma de suas pernas, um tanto vergada à esquerda: os traços dos cabelos esvoaçantes da modelo morena e dos tubos de xampu e condicionador desprenderam-se de seus verdadeiros traços, formando a imagem de explosões toscas, cenas de pedaços de traços voejando pelo interior do outdoor que, como disse anteriormente, às vezes se resumiam em imagens hilárias…
Decidi, então, vir para cá, no intuito de esconder-me, encontrar um local mais seguro. Foi só depois de um tempo que consegui decifrar o que os traços mais baixos da visão do outdoor significavam, quando finalmente a visão se repetiu em sonho: vi-me soterrado em um casebre, o fogo consumindo o que restara…
Despertei em puro terror, lembrando-me que jamais conseguira evitar uma das catástrofes exibidas em visão. Então recolhi o que pude dos pertences que havia levado e ganhei as rochas e a mata à frente, na esperança de escapar daquela maldita visão… a visão da minha própria morte.
Ao chegar à margem de um imenso lago escondido, através da mata fechada, o seu reflexo atraiu-me, como uma flauta que atrai a serpente.
O lago agitou-se levemente, formando um marulhar… outra visão surgira, cujos traços formados pelas diminutas ondas mostravam-me perdido em meio ao mato, círculos de caminhadas inócuas, e as chamas que me cercavam cada vez mais próximas…

5

Finalmente olhei por sobre o ombro, enquanto me mantinha imóvel sob o umbral da porta de entrada do casebre, avistando o espelho aos pedaços em um dos cantos.
Pelo menos não terei sete anos de azar, pensei ironicamente.
Ao volver a visão à frente, ao horizonte longínquo, ouvi um estrondo distante e grave, minha silhueta foi maculada por uma forte luz flamejante, um vento quente e intenso fustigou-me… fechei os olhos e murmurei quase de forma involuntária.
- Maldito Dom!

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