quinta-feira, 17 de maio de 2012

A Colheita

colheita-copia


Ricardo abriu os olhos. Estava deitado em sua cama e coberto até o pescoço. Um frio correu por sua espinha. Sentiu medo. Sentou devagar e fitou o quarto. Parecia normal. A TV continuava sobre o banco e o guarda-roupas, velho com uma das portas caindo, continuava com a porta caindo. A pintura precisava de uns retoques e o teto exibia uma infiltração, mas nada para justificar… aquilo.
Ricardo era um policial aposentado, divorciado e sem filhos, havia se mudado há pouco para o pequeno vilarejo de Porto Claro, com o intuito de passar o resto de sua vida na paz e sossego, longe de balas voando em sua direção e de bandidos querendo sua cabeça. Há dois dias estava na antiga casa da Dona Sônia, uma senhora muito conhecida na região. Voltou a deitar e se cobriu, desta vez, até os olhos.
Druuuum.
O barulho voltou. Abaixou a coberta, repentinamente, e tornou a olhar ao redor. Nada. Respirou fundo, procurando tomar coragem e se levantou da cama. O som parecia ter vindo do outro cômodo. Caminhou, a passos lentos, para a porta que dava acesso à sala antiga. Chegou. Tudo estava normal: a lareira, a mesa, as cadeiras, a TV, o sofá, os vasos sem flores, as caixas de papelão ainda cheias de mudanças, até a pintura, na parede, do rosto de uma mulher, por debaixo de uma levíssima mão de tinta azul. Decidiu que iria pintar a casa assim que amanhecesse e se livrar daquele rosto que, por algum motivo desconhecido, odiava.
Druuuum.
O som novamente foi ouvido e os pêlos de seu corpo se eriçaram. Suou frio. Seus olhos moveram-se instintivamente e se detiveram quando avistaram a mesa.
− Não – reagiu por puro reflexo.
O móvel havia se deslocado cerca de trinta centímetros em sua direção. Com as pernas ainda bambas, Ricardo empurrou a mesa de volta ao seu lugar. O que estava acontecendo? Olhou para as mãos ainda trêmulas e sentiu o medo instalar-se. Avistou a porta e, num vislumbre de esperança, correu para ela. Estava trancada. Mas que raio estava acontecendo, pensou. Nunca costumava trancar aquela porta.
Druuum.
O ex-policial voltou-se e se espantou novamente. A mesa, agora, encontrava-se a menos de um metro. Com as mãos trêmulas e as pernas bambas, avançou cautelosamente em sua direção e, estendendo as mãos, empurrou-a de volta ao seu lugar, ajeitando as cadeiras ao seu redor.
“Isto não está acontecendo!”, pensou, tentando entender o que acabara de acontecer.
Druuum.
A mesa passou a tremer e a aproximar-se lentamente. Ricardo se voltou para a porta e correu.
− Abre, desgraçada! Abre! − reclamou, desesperado.
Sem sucesso, ao forçar a fechadura, recuou um passo e, levantando o pé, chutou a porta com força. Nada. Outro chute e nada. Quando se preparava para desferir o terceiro chute, a mesa moveu-se abruptamente, acertando-o violentamente nas costas, imprensando seu corpo contra a porta, e seu grito de dor espalhou-se pelo ambiente.
Ainda atordoado, Ricardo tentou mover-se para o lado na esperança de se libertar, mas não teve sucesso. O desespero pareceu tomar-lhe conta e ele movimentou-se com violência. Nada. Parou, ofegante, e um novo som chegou ao seu ouvido. Algo se movia atrás dele. Apurou a audição e, imediatamente percebeu que não era apenas um movimento, mas vários.          

* * * * *

            Dante ouviu o grito. Levantou rapidamente do assento sanitário e recolocou as calças. Consultou o relógio que marcava pouco mais da meia-noite. O terceiro dia havia começado.
            − Não − disse, voltando a baixar as calças e a sentar. Pegou uma revista sobre pesca e passou a folheá-la. Queria dormir logo, o dia seria puxado, começariam a colheita.
            O banheiro era reduzido, com espaço suficiente apenas para acomodar a privada, uma pia, o minúsculo box do chuveiro e um pequeno armário, de modo que se tornava impossível a permanência de duas pessoas ali.
            − Ahhhhhh! − o grito, novamente.
            Passando a mão no rosto, Dante se levantou e recolocou as calças, deixando a revista sobre o armário. Lavou as mãos e saiu. Chegando à sala, aproximou-se da janela e olhou para fora. Ele era o responsável pela venda dos imóveis em Porto Claro. Os gritos vinham da casa que pertencia a Dona Sônia, atualmente alugada para um policial aposentado de nome Ricardo. Lembrou-se da chata proprietária que falecera há cerca de dois anos e, que dos vinte em que vivera ali, o atormentara em todos eles. O Sr. Ricardo era o segundo inquilino a ocupar a propriedade. O primeiro fora… Dante não gostava nem de pensar no assunto. Caminhou até o quarto e verificou que sua esposa ainda dormia profundamente. Retornou à sala e colocou um casaco, apanhando a espingarda velha e enferrujada que, apesar de tudo, ainda funcionava, e saiu.

* * * * *

             O segundo grito de Ricardo não foi por causa da dor, mas sim porque, após conseguir
virar-se, parcialmente, avistou, de rabo-de-olho, algo inacreditável. Tudo, absolutamente tudo, em sua casa estava flutuando no ar. Os vasos das plantas, as cadeiras, televisão e caixas de papelão, que se abriam sozinhas. Os copos de vidro vagavam pelo ar desafiando a lei da gravidade. Desesperado, o ex-policial começou a esmurrar a porta, gritando por socorro. Certamente alguém iria ouvi-lo e partir em seu auxílio. O terror o dominava. As batidas na porta aumentaram de intensidade. Subitamente, ouviu um barulho diferente. Procurando virar o corpo, avistou a lareira acender-se sozinha. O fogo possuía proporções fora do normal. Um das cadeiras moveu-se para perto das chamas e se incendiou.
            “A casa vai pegar fogo!”, pensou.
            Usando toda a força que possuía, Ricardo voltou a bater na porta. Estava completamente em pânico.
            − Abre, maldita! − gritou.
            Outro som chamou-lhe a atenção e ele voltou-se para o aparelho de TV que, ligado, apresentava uma tela sem imagens, com aquele chuvisco característico dos aparelhos fora de sintonia. Sentiu calafrios e um líquido quente escorreu-lhe pelas pernas, enquanto uma imagem começou a se delinear em meio ao caos da tela da TV. Uma imagem distorcida que, aos poucos, foi tomando forma. Era um… um rosto de mulher.

* * * * *

            Dante passou pelo portão há alguns metros da porta de madeira da casa que fora da Dona Sônia, hoje alugada ao tal de Ricardo, e que ainda possuía aquele ar estranho de velharia. Era um pouco mais isolada das demais casas de Porto Claro, não fazendo parte da única rua do vilarejo. Conforme se aproximava, Dante podia ouvir mais nitidamente os gritos. Eram de arrepiar. Preparou a espingarda e acelerou o passo. Com certeza estava acontecendo… de novo. Chegou. Encostou a mão na maçaneta e percebeu que estava quente, muito quente. Recolheu a mão antes que se queimasse.
            − Ricardo − chamou.
            − Socorrooo! − ouviu da voz que vinha do lado de dentro − Me ajuda, por favor!
            Antes que fizesse qualquer coisa, Dante ouviu passos às suas costas. Outros cinco vizinhos também escutaram a gritaria e haviam chegado ao primeiro portão. Eufórico, ele voltou-se, novamente, para a porta.
            − Se afasta da porta. Eu vou atirar na fechadura − pediu o velho, aos gritos.
            − Não tem como. Estou preso, encostado nela.
            − O que está acontecendo aí?
            − Está tudo voando, o fogo da lareira pegou numa das cadeiras e tá dominando tudo!
− A TV, o que esta acontecendo com a TV? – perguntou Dante.
− Pra que você quer saber da TV? Me tira daqui antes que eu vire churrasco!
− O que está acontecendo com a TV? – repetiu o velho, agora com mais ênfase.
− Tá com uma mulher estranha na tela, falando uns troços que não consigo entender! – respondeu – Agora me tira daqui!
            − Meu Deus! − soltou Dante horrorizado.
            Os outros vizinhos se aproximaram, com a expressão de curiosidade estampada nos rostos.
            − Está acontecendo de novo? − perguntou um deles.
            Dante moveu a cabeça de forma afirmativa, passando, juntamente com os outros, a observar a porta.
            − Queria poder fazer algo! − afirmou outro, enquanto Dante suava, demonstrando todo o seu nervosismo.

* * * * *

            Dentro da casa, subitamente, a mesa soltou Ricardo.
− Meu Deus! − disse com certo alívio e, olhando para a tela da TV, benzeu-se.
O rosto da mulher pronunciava frases em uma língua estranha que, embora não conseguisse identificar, Ricardo tinha a certeza de já a ter ouvido em algum lugar. Teve sua atenção desviada para o fogo, que se intensificava cada vez mais, se espalhando com uma fome voraz por todo o cômodo. As chamas pareciam estar vivas, espreitando-o, cercando-o como se fossem um predador prestes a dar o bote. A mobília flamejante flutuava, enquanto a temperatura aumentava cada vez mais. Foi então que a explosão aconteceu.

* * * * *

Dante se assustou com o barulho. Pela chaminé saiu, durante longos segundos, uma estranha chama esverdeada. Silêncio. O velho olhou no rosto de cada um dos vizinhos ali presentes. Todos tremiam.
− Abre − pediu um deles.
Dante colocou a mão trêmula na maçaneta. Ainda estava quente, mas suportável. Forçou-a e o ranger da porta foi macabro. Assustador. Deu um passo à frente. Deparou-se com o corpo carbonizado, preso ao teto. Sempre ficavam presos ao teto. O fogo desaparecera e, como por encanto, tudo estava em seu devido lugar. Após todos entrarem, a porta foi chegada. Instintivamente, como se aquele ato fosse corriqueiro a todos, ajoelharam-se de frente para o rosto pintado na parede com uma leve mão de tinta azul por cima, feita pelo próprio Dante, para disfarçar. O velho precisou tomar coragem antes de dizer:
− Já lhe oferecemos o sacrifício, nossa adorada deusa, agora, em troca, como fizeste nos anos anteriores, vos pedimos que abençoes nossa colheita.


FIM

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