quinta-feira, 17 de maio de 2012

Ammazônhia Global - Parte 2


  — Nano-salto, carai – gritou Bit – com evasivas.
            — Puta que o pariu até…
            Oito versões do jovem, idênticas entre si, surgiram e correram em direções opostas. E sumiram no ar.
            —… que enfim cê feiz alguma coisa, cheguei a pensar que ia morrer ali. – resmungou o 2i-g.
            — Cala… a… boca… – disse Bit em meio à náusea, procurando se apoiar em alguma árvore, seu estômago parecia ter sido virado do avesso.
            Os nano-saltos eram deslocamentos curtos, 7,34 km no máximo, e, diferentemente dos Saltos LHC, que eram de longa distância, não precisavam de uma unidade de salto para serem executados, os tele-transportes eram controlados diretamente pelos 2i-g (double ai di) – Implantes Inteligentes Genéticos. O inconveniente é que podiam causar náuseas, vômitos, tonturas, desorientação, diarréia, descontrole emocional e perda do apetite sexual; seu uso prolongado levava à morte pela fragmentação do esqueleto, por isso só era permito um nano-salto a cada 9h23min12seg.
            Orientação gravada diretamente nos 2i-g.
            — Onde estou? – perguntou depois de alguns minutos lutando para não vomitar.
            — O mais longe daqueles putos que deu pra ir, direção sul-sudoeste, as porras das evasivas vão impedir que sigam nosso rastro.
            As evasivas eram imagens holo-reais, usadas para despistar rastreadores. A segurança recém conquistada deixou Bit mais calmo.       
            — Que tipo de monstros eram aquelas coisas medonhas?
            — Monstros!? Eram índios, porra!!
            — Índios?! Cê tá brincando, pelados daquele jeito!?
            — Se tivesse ido a todos os dias da merda da SamA saberia que era assim que eles andavam antigamente, pelados, com os corpos pintados com um monte de zicas e penas na cabeça, esta imagem de executivos de ternos Gucci-Armani é coisa recente.
            — Nhé-nhé-nhé. Parece a mãe falando, em vez de ficar me criticando me explica: se eles não são monstros, porque os lasers não funcionaram? Tenho certeza que a EA acertou uma porrada de tiros, mas não vi nenhum cair.
            — Num tenho a menor idéia, o status da porcaria está ok…
            Sem aviso, o exo-traje apagou, deixando Bit no escuro. Em seguida, desapareceu por completo; junto com ele, a EA.
            — QUI MERDA CÊ TÁ FAZENDO? – gritou.
            ­— Não fui eu chefe, juro…
            O ar ao redor do jovem aqueceu algo quase imperceptível. Estalidos secos, como o estalar de dedos ecoaram na escuridão. A náusea que bit estava sentindo piorou; muito.
            As evasivas tinham falhado.
            — Múltiplas aproximações…
            — Shiiii, carai – sussurrou Bit – acesso telepático. “Acionar defesa, acionar EA, acionar qualquer merda de proteção”.
            “Não consigo” – disse o 2i-g, diretamente no cérebro de Bit.
            “Faz alguma coisa, liga pra alguém, por favor, não quero morrer…”.
            “Sinto muito…” – se fosse possível, alguém diria que havia tristeza naquela voz.
            Sem o traje e sem a esfera, Bit estava desprotegido. Saber disso o deixou paralisado. Em pânico. Não era um aventureiro, esta era a primeira vez que tinha saído da ultra-lópole São Rio-Belô. Não sabia o que fazer. O medo era algo vivo que se movia por baixo da sua pele. Um só pensamento ecoava dentro da sua cabeça. Não queria estar ali.
            “Se mexe cara! Sai correndo. Só não fica parado. Senão vai morrer…” – o 2i-g procurava desfazer a paralisia que tinha tomado conta do corpo do jovem. Em vão.
            Tudo o que Bit conseguiu fazer foi se encolher, no mesmo lugar onde estava, cada vez mais, até se ajoelhar no chão.
            — Monstros… – sussurrava, quase inaudível.
            O som de passos se aproximando fez seu coração acelerar ainda mais, a veia do seu pescoço parecia que ia explodir. Lágrimas escorreram de seus olhos.
            Sombras se moviam na escuridão, curvadas, aproximando-se devagar do jovem ajoelhado. Muitas sombras. Silenciosas.
            — Protocolo Winehouse – sussurrou Bit – senha: vó Dinda.
            Seu desespero tinha ultrapassado todos os limites. Protocolo Winehouse era um procedimento de suicídio – modelo padrão.
            — Impossível executar PW… – Bit sentiu cada silaba da resposta do 2i-g como se fosse uma lâmina penetrando em seu cérebro.
            Estava perdido. Não restava nada mais a fazer. Fechou os olhos e deixou as lágrimas caírem de vez. Ia morrer ali, chorando como uma criança, cercado por criaturas medonhas, sentindo dores lancinantes… E louco. Podia jurar que ouvia risadas.
            — Luz! – a voz, nítida e macia veio de algum ponto na escuridão.
            Uma forte luz esbranquiçada surgiu, forçando Bit a cerrar os olhos; preferia tê-los fechado de vez, mas não, se forçou a olhar. E os viu. Em meio à claridade. Horríveis.
            Não eram altos, talvez da mesma altura que ele, mas mais encorpados. Pele escura, oleosa, de um brilho sujo, tinham passado algo sobre o corpo. Nas mãos, pedaços de madeira enfeitados com penas e cipós; longos arcos e porretes, armas brutas. No peito ostentavam grosseiros desenhos, mas o pior era o rosto, todo manchado, de várias cores, como máscaras grotescas, de olhos apertados, negros, selvagens, lábios perfurados por pedaços de ossos pontiagudos, orelhas trespassadas por longas penas. Até seus narizes eram perfurados por ossos. Bocas deformadas, com dentes irregulares e amarelos. E estavam rindo; gargalhando até. Apontavam o dedo para ele e se acabavam de dar risada.
            — Sinto muito pelas pilhérias, meu mijado amigo, mas sua reação de extremado pânico ante nossa aproximação foi deveras hilária – disse um deles, aproximando-se. Parecia ser o líder do bando.
            Bit não sabia o que pensar; ainda com lágrimas no rosto, encarou o monstro. Milhões de perguntas pipocaram em sua cabeça; a que mais incomodava era também a mais idiota: queria saber como aquela coisa conseguia falar tão bem com um pedaço de pau do tamanho de uma mão enfiado no lábio?
            Nem percebeu que tinha se mijado todo.
            — Vejo que está confuso, o que é bem compreensível – disse o líder de voz macia – a aparência de meus ancestrais têm este dom, o de assustar as pessoas. Desfazer exo-traje – ordenou.
            Um leve tremor no ar, e o monstro sumiu. O que surgiu no lugar Bit reconheceu na hora. Cabelos negros e lisos, finamente cortados e penteados. Ar altivo, de superioridade; um terno de cor creme impecável; sapatos que brilhavam de tão novos; um discreto anel de ouro na mão direita; um nada discreto diamante em uma das orelhas. Um índio típico.
            Uma mistura de alívio e apreensão percorreu o corpo do jovem; não eram monstros afinal, mas ele também não deveria estar ali, estava cometendo um crime; mas não eram monstros.
            “Não diz preles que cê tava aqui roubando a merda da água do rio” – disse o 2i-g.
            “Shiiii, porra! Eu sei, agora cala a boca!” – respondeu Bit, telepaticamente.
            — Caras – disse Bit, mais calmo, enxugando as lágrimas – ceis num sabe a alegria de ver vocês… – abriu um sorriso amarelo – eu tava perdido, dá pra acreditar?
            — Não, meu rosado amigo! – respondeu o líder.
            Todos voltaram a gargalhar, tinham desligado os exo-trajes, e agora eram uma roda de executivos bem vestidos; as armas primitivas também sumiram, o que Bit via agora eram sofisticadas poli-guns – de uso militar, mas que podem ser adquiridas por um preço ofensivo; créditos era algo que os índios tinham de sobra, até os exo-trajes dos sujeitos eram de primeira linha, com camuflagem customizada e blindagem reforçada – as PoGus disparavam projéteis autoconfiguráveis, coisa inacessível para gente comum. Um deles é um disruptor de exo-trajes, que inseria um vírus diretamente nos 2i-g.
            Por isso os defeitos. Bit teria que fazer uma varredura completa quando chegasse em casa para limpar o seu implante. E comprar um fire-wall decente.
            — Sabemos que invadiu nossa tão aprazível floresta atrás de água-doce, e isso é um crime deveras hediondo, tenha consciência disso… – continuou o índio.
            — Isso é uma mintira deslavada! Eu to perdido memo; pode me entregar pra eco-milícia pra uma merda de neuro-sondagem, ceis vão vê que to falano a verdade – disse Bit.
            “Cê garante o drible na NéuSon, né não?!” – perguntou Bit telepaticamante.
            “Tamos aí chefia, é nóis…” – respondeu o 2i-g, tranqüilizando o jovem quanto à sondagem neural – “Tô quase achanu o sacana do vírus, daqui a poco tô limpo”.
            — Entregar você para uma eco-milícia? Claro que não, meu tenro amigo, nós aqui reunidos temos, como direi? Outros planos para você – disse o líder – algo mais, digamos, sofisticado; sua ilustre pessoa fará parte de uma douta pesquisa antropológica.
            — Antro o quê?! – perguntou Bit – De que porra cê tá falanu?
            “Num tô gostando dessa conversa” – disse o 2i-g.
            — Digamos que seja algo como uma volta ao nosso tão glorioso passado.
            — Ceis qué voltá a sê índio como antigamente, é isso? Tipo os Macuxi? – perguntou Bit, falando o nome da primeira tribo que lembrou.
            — Macuxi!? – respondeu o líder – Temo que não, meu magriço amigo! – todos riram – Nós, meus totêmicos confrades e eu, estávamos propensos a uma abordagem mais primeva em nossa acadêmica experiência. Optamos por algo mais na linha, digamos, Tupinambá…
            “Qui porra é um Tupinambá?” – perguntou Bit.
            “É UMA MERDA DE CANIBAL, CARAIO…” – gritou o 2i-g.
            — AH! MERDA… – Bit se virou rapidamente; ainda a tempo de ver uma borduna descer violentamente sobre sua cabeça.
            — Precisamos pedir para o C´F nos mandar um gordinho da próxima vez…
            O 2i-g ainda ouviu as risadas, antes de apagar.

Fim.

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